Izabella Pavesi

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Textos

        Os trens noturnos



        Meu fascínio por trens vem desde jovem, quando peguei o trem Curitiba-Paranaguá, com amigos. Aí descemos a Serra do Mar serpenteando as montanhas entre neblina e raios de sol.
        Em 2005, encantei-me ao conhecer os maravilhosos trens da Europa, vislumbrando as paisagens se descortinando lá fora; e viajar de trem pela Itália é muito bom. Eles te levam de norte a sul, de leste a oeste, rápido e confortavelmente.
        O primeiro trem que peguei Milão-Ancona foi inusitado. Saiu às onze horas da noite, todos sentados e compenetrados em suas lidas diárias. Na cabine cinco homens maduros e eu. Pareceram-me cansados em seus inofensivos olhares. Sentei, e absorta me mantive em meus pensamentos. Eis que, na estação de Cremona sobe uma jovem alta, elegante, magra e loira. Só reparei quando ela mostrou o bilhete pro senhor a meu lado e ele se levantou: o lugar era dela! Então, ela abriu um laptop brilhoso, e, passou a assistir um filme em preto e branco. Era tão interessante que não consegui deixar de olhar pra aquela tela em movimento. Não peguei o nome do filme, mas, impossível não reconhecer Humprey Bogart, aquele galã maravilhoso do cinema cult! Que chique!... Madonna... por uns bons momentos, os olhares dos outros no trem iam dos pés da jovem pra cima e pra baixo. Ela arrasou!... Quatro horas e meia depois desci em Ancona, e segui rumo à Fabriano.
          Depois de alugar uma kitinete em Castelraimondo no intuito de localizar os papéis para a cidadania italiana, juntou-se a mim, Mariana, uma amável vovó, com os documentos já legalizados pelo Consulado, crente que, dessa vez, sairia o tão sonhado passaporte vermelho. Ficamos por lá, e nesse ínterim nossos propósitos foram contornados com idas e vindas de trem. E os noturnos foram memoráveis.
          Fomos logo à Macerata. Passamos horas caminhando pra achar a tal rua que nos levaria ao Departamento de Imigração. Ficava fora do centro, pegava à direita, depois à esquerda, dobrava a esquina, passava o complexo esportivo, depois pra cá e depois pra lá... nos esgotamos!... Por fim, um senhor gentil nos deu carona até lá. Ficamos chocadas com a cerca de arame!... Aquilo não combinava com a bela cidade. Uma fila de gente diferente e humilde esperava do lado de fora. Tentamos resolver nossa questão, mas foi impossível. O expediente era das 8,30 até às 10 horas. Imagine! Fomos dia seguinte lá de novo, bem cedinho, e nem assim Mariana conseguiu dar entrada na cidadania italiana. Eu bem que tentei, mas logo soube que faltavam dois documentos. Aproveitamos e fizemos um tour, comemos pizza e tomamos vinho. Pelas 9 horas da noite pegamos o rumo de casa. Aquele trem foi o maior sonífero que já tínhamos provado. Nossa!... nem sei como descrever... O vagão sacudia lentamente, e uniformemente, seguindo seu ritmo tão lento, que foi preciso cutucar Mariana e ela a mim, vez por outra, pois não tinha palito que mantivesse nossos olhos abertos. O véu do sono desceu e grudou na nossa pele, e lá fora só se via um breu arrepiante. Ufa!... não foi fácil! Poucos postes iluminavam a ferrovia, exceto quando se aproximavam das estações. E, se não ficássemos atentas iríamos parar lá em Falconara, e ter que voltar! Oh! Não... nem pensar!
          Semana seguinte, decidimos ir até Verona e pra economizar uma diária, o melhor a fazer era pegarmos o trem noturno. Que impactante!... Menos mal que compramos cabine padrão. Ao entrarmos tivemos que nos espremer entre os inúmeros sujeitos estranhos, uns com latas de cerveja disfarçadas, outros com imensas mochilas que barravam a nossa passagem, até chegarmos a nossa poltrona numerada. Pedi licença ao rapaz... este me fixou o olhar por longos segundos,... demorou-se em desocupar o assento que eu havia pago. No Residence me alertaram sobre desembarques ilegais de gente perigosa em solo italiano naqueles meses, e que vinham do lado de lá do Adriático trazendo confusão, fazendo maldades, e que, costumeiramente entravam clandestinos nos vagões.
Ao chegarmos à Bologna, fizemos baldeação. Que perigo a madrugada naquela estação! Dois vândalos nos vigiavam de cá e de lá. Ficamos realmente preocupadas. Às cinco e meia veio o comboio que esperávamos e rumamos pra conhecer a cidade da Julieta.
          Dias depois, fomos pra Milão. Na volta, decidimos assim: eu pegaria o trem até Parma, e ela iria mais tarde, nove horas da noite na linha 753. Não podíamos errar: eu teria que subir no mesmo trem que ela pegaria em Milão só que eu o pegaria em Parma. Mariana estava apreensiva... e se não nos encontrássemos? Ela tremia só de pensar na possibilidade de ir sozinha até Castelraimondo, muito tarde da noite.
Quando desci em Parma, meu amigo me aguardava. Fomos a uma pizzaria e conversamos por horas. Como é bom rever velhos amigos! Sem dúvida, foi uma grande aventura. Despedimo-nos e voltei à estação. Cheguei à plataforma com o coração aos sobressaltos. Não poderia perder o trem certo. E se por acaso pegasse o errado e fosse parar lá pras bandas de Bari? Nossa, que aperto no coração. Veio vindo a toda velocidade um comboio. Preparei-me. Os viajantes parados, uns seis ou sete, prontos para embarcarem pra algum destino, olharam-se e olharam a mim.
          - Este vai pra Lecce! – me informou um deles. (ufa!... que bom saber!)
Esperei mais uns minutos e logo veio outro trem. Aprumei-me. Esse foi desacelerando... e desacelerando... e antes que parasse ouvi um grito daqueles:
          - Izabella!!!... Izabella é aqui! – com toda força que saía de seus pulmões, Mariana me chamava pro seu vagão, pros assentos já comprados dias antes. Corri. Subi esbaforida. Que sufoco! Que coragem! Fomos pra cabine onde mais quatro viajantes nos observavam incrédulos. Felizmente, Mariana ficou atenta e tudo correu bem.
          Noutro fim de semana fui passear em Parma novamente. No retorno, peguei o trem Parma-Ancona às 8,30 horas. Ao descer, ajeitei minha touca e a echarpe, e tomei um delicioso café expresso. Dirigi-me à plataforma para o segundo trem que me levaria até Fabriano. Aprumei o passo e subi os degraus do vagão de classe econômica. Dei uma olhada pelos bancos vazios e me sentei do lado direito próxima a um único rapaz. O trem apitou, e em poucos segundos dois homens velozmente entraram e se sentaram atrás de mim. O trem partiu e lá fora o breu da noite e as vozes dos dois ali atrás começaram a me assustar. O vulto de um deles se metia entre o meu banco e o outro a meu lado, com palavras estranhas em voz alta. Um medo se achegou, aquilo me fez estremecer. O outro viajante também percebeu qualquer coisa errada,... cruzamos o olhar em cumplicidade. Ainda não tinha sentido tanto medo de viajar de noite naqueles trens que outrora me pareciam seguros. Passaram-se intermináveis minutos, meu coração disparado acelerou. O trem foi indo em frente,... e a sensação ruim continuava. De repente, a porta da frente se abriu velozmente, e apareceu o fiscal da via férrea. Ao perceber os dois homens atrás de mim, ele deu um grito irado.
          - Mascalzoni! (velhacos!)... Os dois se puseram em corrida no sentido de esconder-se pela porta de saída, imediatamente.
          - Ainda estão perturbando? Outra vez? Viajando sem pagar? E tentando roubar outra vez? Maledetti, maledetti! ...(malditos, malditos!) – e os alcançou. Soltou uma saraivada de impropérios, um sermão aos gritos que os fez descer assim que o trem parou na estação seguinte.
          Que susto! O rapaz à frente me olhou condescendente. – Preciso chegar a Fabriano. – falei. A noite escura escondia o nome das estações que se seguiam. Eram quase dez horas da noite. Por sorte, logo chegamos ao nosso destino.
          Descemos ali na escuridão. Entrei na pequena sala, cujo operador das máquinas quase dormia solitário. Olhei os horários na parede. Aí meu coração disparou ainda mais. 
          - Não tem mais trem pra Castelraimondo?! Não pode ser?! – tremi.
          - Agora só um ônibus virá daqui a uma hora, ... e irá até lá – falou-me com calma aquele senhor (devia ter uns 50 anos). Então, se deteve a me observar e quis saber o que me levava a viajar pra aquelas terras longínquas, e saber das coisas do meu país.
          - Tem muitos brasileiros que veem estudar aqui?
          - Sim, ali em Castelraimondo veem muitos, na maioria, são os descendentes de italianos. – assenti. Fui contando muitas coisas pra disfarçar o meu temor.
          O ônibus chegou, enfim. Felizmente, as pessoas estavam voltando pros seus lares, e eu me acalmei. Ainda caminhei da estação ao apto sob um frio gélido e um silêncio só. Cheguei ao apto do Residence quase meia hora da madrugada.
          Quantas emoções!

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                                                                           Izabella Pavesi

PUBLICADO NA REVISTA "INSIEME"  nº 162 , de Junho/2012 - em português e italiano

Izabella Pavesi
Enviado por Izabella Pavesi em 11/05/2012
Alterado em 06/07/2012


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